APROXIMAÇÃO ENTRE BRASIL E ARGENTINA PODE DESTRAVAR PROJETOS E FOMENTAR NEGÓCIOS DENTRO DO SETOR NUCLEAR
Por Davi de Souza (davi@petronoticias.com.br) –
Em sua primeira viagem internacional após a posse, Lula está na Argentina para participar hoje (24) da Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). A passagem do presidente por Buenos Aires trouxe uma boa expectativa de fortalecimento da parceria com a Argentina no setor de energia nuclear, conforme noticiamos ontem (23). Lula e o presidente da Argentina, Alberto Fernández, afirmaram que a ideia é consolidar a posição dos dois países como possuidores de tecnologia nuclear para fins pacíficos. Essa reaproximação entre as duas nações é um passo fundamental para destravar novos projetos nucleares, de acordo com representantes do setor.
O presidente da ENBPar, Ney Zanella (foto), explica que Brasil e Argentina possuem um grande potencial para fomentarem ainda mais a produção e a exportação de combustível nuclear, por exemplo. Outra oportunidade está relacionada ao desenvolvimento conjunto de pequenos reatores modulares (SMR, na sigla em inglês). Em paralelo, a união de esforços entre as duas nações poderia ajudar ainda a viabilizar o tão aguardado Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) – que garantiria a autossuficiência do nosso país na produção de radiofármacos. “Vários desses temas suscitados teriam mais chance de avançar caso integrados a algum projeto binacional comum capaz de gerar sinergias econômicas, comerciais e tecnológicas”, avaliou Zanella. O presidente da ENBPar defende ainda um regime tributário diferenciado entre Brasil e Argentina para o setor nuclear, uma bandeira que também é levantada por outros agentes da indústria, como a Associação Brasileira para Desenvolvimento das Atividades Nucleares (ABDAN).
Para iniciar nossa entrevista, poderia fazer um panorama geral da relação entre Brasil e Argentina no setor nuclear?
A reaproximação entre o Brasil e a Argentina, a partir dos anos 80, abriu a perspectiva de uma ampla agenda cooperação e sinergia bilateral, valendo-se das significativas conquistas e capacitações nucleares adquiridas separadamente por ambos os países. Passados mais de 30 anos, é mister reconhecer, no entanto, que essas expectativas foram em larga medida frustradas. O potencial de conhecimento industrial e de capacitação tecnológica não resultou em uma efetiva parceria capaz de sustentar projetos nacionais e binacionais mais ambiciosos no campo nuclear.
Ao seu ver, quais motivos levaram a esse resultado aquém do esperado?
Afora circunstâncias econômicas e políticas mais abrangentes, dois aspectos limitaram, de forma determinante, as oportunidades para o desenvolvimento integrado de projetos de grande alcance. De um lado, opções tecnológicas divergentes em matéria de enriquecimento de combustível (difusão gasosa, na Argentina, versus ultracentrifugação, no Brasil; e tecnologias diferentes de reatores (água pesada, na Argentina, versus água leve, no Brasil).
De outro lado, opções estratégicas igualmente contrastantes para o emprego da tecnologia nuclear. Havendo abandonado pretensões de desenvolver essa tecnologia para aplicações militares não proscritas pelo TNP, a Argentina privilegiou aplicações no campo comercial. Disso é expressão o êxito no desenvolvimento e venda internacional de reatores de pesquisa pela INVAP. Na contracorrente, o Brasil empenhou esforços na formação e capacitação pelas universidades e institutos tecnológicos, na mineração e fabricação de combustível com urânio enriquecido e também na viabilização do projeto de propulsão naval nuclear.
Como consequência, os dois países não lograram unir esforços para superar as recorrentes dificuldades e entraves à consolidação de uma indústria nuclear regional comercialmente vibrante, capaz de gerar dividendos financeiros, alavancar ganhos tecnológicos e difundir socialmente os benefícios das aplicações nucleares.
O aspecto financeiro também representa um desafio, certo?
Nos dois países, vive-se cenário de dependência de capitais externos para financiar projetos no campo prioritário da geração nucleoelétrica, com limitadas perspectivas de alavancar capacitações construídas e acumuladas ao longo dos anos, com grande esforço político-institucional e custo econômico.
Isso ajuda a explicar que, para ter acesso a capitais chineses para construir novas usinas de geração, a Argentina terá de abdicar de investir em projetos tecnológicos autônomos (combustível e enriquecimento). No caso do Brasil, a viabilização financeira da conclusão das obras de Angra 3 está associada às dificuldades em viabilizar comercialmente tecnologia já amplamente dominada pelo país, que inclui o ciclo do combustível nuclear, em especial, o enriquecimento de urânio.
Quais iniciativas foram tomadas para tentar reaquecer a parceria entre os dois países?
A constituição da Comissão Binacional de Energia Nuclear (COBEN) buscou identificar e promover parcerias bilaterais capazes de alavancar, com apoio governamental, o alto potencial de colaboração entre setores nucleares com importantes convergências e potencialidades. O entusiasmo político-diplomático inicial não foi capaz, entretanto, de sobrepor-se às recorrentes dificuldades, nomeadamente a inexistência de um regime tributário diferenciado para o setor nuclear e a frustração de expectativas argentinas de contar com apoio para completar o domínio comercial da tecnologia de enriquecimento por ultracentrifugação, além da escala laboratorial.
A retomada da regularidade das reuniões do Comitê Permanente de Política Nuclear Brasil-Argentina (CPPN) pode sinalizar uma disposição em dinamizar essa parceria a partir da complementaridade de competências.
Quais são os principais pontos nos quais a cooperação entre Brasil e Argentina pode trazer bons resultados?
Áreas temáticas que oferecem oportunidades para requalificação e aprofundamento da parceria bilateral incluem:
- produção e exportação de combustível nuclear: a INB já vem fornecendo pó de urânio (UO2) enriquecido para a empresa argentina;
- serviços e equipamentos de reposição para manutenção de usinas de geração;
- remediação ambiental de zonas de mineração de urânio: a experiência argentina em Mendoza poderá ter aplicação em Poços de Caldas;
- revalorização e capacitação da ABACC [Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares]: aprofundar oportunidades de cooperação com a AIEA [Agência Internacional de Energia Atômica];
- atividades conjuntas no âmbito da AIEA: apresentações conjuntas na Conferência Geral e demais eventos;
- conhecimento da experiência argentina em foros/mecanismos dos quais o Brasil está ausente (NEA/OCDE, INFNEC, Arranjo de Wassenaar);
- desenvolvimento conjunto de pequenos reatores modulares (o CAREN, com 300 MW de potência, é reator integrado e, portanto, de conceito tecnológico mais avançado do que o Labgene, com 30W de potência);
- projeto do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB);
- regime tributário diferenciado para o setor nuclear, à semelhança do que já existe na linha branca e automotiva;
- Protocolo Adicional: aprofundar coordenação de posições.
Avanços nesses campos foram historicamente dificultados pela natureza pontual e tópica das propostas. Vários dos temas suscitados teriam mais chance de avançar caso integrados a algum projeto binacional comum capaz de gerar sinergias econômicas, comerciais e tecnológicas.
E quais seriam os ganhos a partir desse projeto binacional mencionado pelo senhor?
Tal projeto poderia servir de moldura para realizar o potencial para desenvolver verdadeira parceria estratégica no campo nuclear com ganhos reais para os dois países.
Exemplifico opções vantajosas para os dois países:
a) transformar a parceria, atualmente estritamente comercial, em apoio à construção e operação do RMB, em um projeto comum de produção conjunta de radioisótopos, mediante o estabelecimento de uma cadeia de produção e logística de distribuição integrada binacional;
b) acordo comercial no setor estritamente nuclear para alívio dos custos com isenções tributárias para incrementar a troca de produtos/serviços (combustível para reatores, radioisótopos, radiofármacos, irradiação de alimentos, monitoramento ambiental, produtos industriais para componentes de usinas e laboratórios etc) e projetos tecnológicos nucleares.
Excelente matéria!
Na verdade . . . ninguém quer transferir o conhecimento adquirido para o outro . . .