CRIAÇÃO DA AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA NUCLEAR AINDA NÃO SAIU DO PAPEL APÓS DOIS ANOS E AFETA A IMAGEM DO BRASIL NO EXTERIOR
A criação da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), em outubro de 2021, a partir da cisão da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), veio com a finalidade de “arrumar a casa” do setor. Isso porque a CNEN acumula as funções de operação de instalações nucleares, regulação e fiscalização de segurança – o que configura um conflito de interesses e contraria as melhores práticas e normas internacionais. A ideia era que a ANSN ficaria com as funções de regulação e fiscalização, enquanto a CNEN se concentraria em suas atribuições de pesquisa. Porém, dois anos após a publicação da lei que criou a ANSN, a nova autarquia ainda não saiu, de fato, do papel. Para entender melhor o que já foi feito até aqui para a criação do novo órgão e quais são os próximos passos, o Petronotícias entrevista hoje (16) o geólogo e engenheiro nuclear José Mauro Esteves. Ex-presidente da CNEN, Esteves também foi coordenador pela Casa Civil da elaboração da Medida Provisória que deu origem à lei da ANSN. Ele alerta que essa indefinição sobre o futuro do novo órgão nuclear prejudica enormemente a credibilidade do Brasil no exterior. Esteves explica ainda que para que a ANSN possa de fato iniciar suas atividades, o governo deve indicar os nomes dos futuros diretores da autarquia. Em paralelo, a Comissão de Minas e Energia da Câmara marcou recentemente uma audiência pública para discutir o tema, o que pode ajudar a destravar a criação da ANSN.
Para começar, poderia explicar aos nossos leitores o motivo que levou o Brasil a criar a ANSN?
A criação da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear é uma necessidade que já foi reconhecida por vários órgãos e entidades. Esse reconhecimento teve início em 1986, com a publicação do “Relatório da Comissão de Avaliação do Programa Nuclear Brasileiro”, elaborado pelo professor José Israel Vargas. Nesse documento, foi identificado um conflito de interesses dentro da CNEN, que é o órgão regulador de segurança nuclear no Brasil, mas que também opera instalações nucleares, como reatores, fábricas de combustível e de radiofármacos. Portanto, ela se autorregula. No plano internacional, os relatórios bianuais da Convenção de Segurança Nuclear frequentemente destacavam a existência desse conflito de interesses dentro do Programa Nuclear Brasileiro.
E quando começaram os movimentos para criação do novo órgão?
Em 1990, houve uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito no Congresso Nacional que também destacou esse desvio de função e conflito de interesses. Em 1994, foi assinada a Convenção Internacional de Segurança Nuclear, a qual tive a honra de assinar pelo Brasil, juntamente com a embaixadora Thereza Maria Machado Quintella. Em 1997, a Convenção Conjunta de Gerenciamento Seguro do Combustível Nuclear foi assinada, também apontando esse desvio de função da CNEN.
Em 2014, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu o Acórdão 1108/2014, no qual recomendou que a Casa Civil, que na época coordenava o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro, resolvesse a questão desse conflito de interesses. E, finalmente, em 2020, a Casa Civil da Presidência da República decidiu intervir nesse processo.
E quais foram os próximos passos tomados naquele ano?
A criação efetiva da ANSN teve início em 9 de junho de 2020, quando ocorreu uma reunião sobre o tema na Casa Civil. Naquela oportunidade, o Ministério de Minas e Energia, o Ministério da Ciência e Tecnologia e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) apresentaram três propostas distintas, que não estavam alinhadas e enfrentavam diversos problemas legais.
Posteriormente, eu elaborei uma proposta de harmonização, que foi apresentada em 13 de junho de 2020. Nessa proposta, o Ministério de Minas e Energia ficaria com a ANSN e com o Instituto de Radioproteção e Dosimetria como órgão de suporte técnico. Enquanto isso, o Ministério da Ciência e Tecnologia ficaria com a CNEN e os institutos de pesquisa.
É importante notar que o Decreto-Lei 200 estabelece que todas as autarquias devem ser vinculadas ao ministério onde se concentra a maior parte de suas atividades. A Anvisa, por exemplo, está vinculada ao Ministério da Saúde. Então, não há dúvida de que o Ministério de Minas e Energia é a pasta com mais atividades nucleares. Há pareceres da Subchefia de Assuntos Jurídicos da então Secretaria-Geral da Presidência da República, do antigo Ministério da Economia e do próprio Ministério de Minas e Energia que defendem esse ponto.
A partir dessa proposta harmonizada, foi alcançado um acordo e elaborada a Medida Provisória 1049/2020, que estabeleceu a criação da ANSN.
O que essa nova legislação trouxe de novo para o setor?
A Medida Provisória 1049, que depois foi convertida na Lei 14222/2021, cria algo que atualmente não existe na legislação brasileira. A CNEN tem apenas dois instrumentos de trabalho: fechar uma determinada instalação em caso de irregularidade ou confiscar fontes radioativas. Não existe uma terceira alternativa, como multas ou suspensão de atividades. A CNEN não possui uma gradação de infrações. A Lei 14222/2021 define o que é fiscalização, as infrações, o rol de sanções, a autoridade competente para impor sanções e a gradação das sanções. Esse é o grande mérito da Lei 14222: ela instrumentaliza a ANSN para efetivamente exercer o papel de órgão regulador.
Poderia explicar por que a ANSN ainda não começou a funcionar efetivamente?
Quando a lei foi aprovada na Câmara dos Deputados, foi definida a forma de indicação do presidente da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear, que teria mandato e precisaria passar por uma sabatina no Senado. Além disso, os parlamentares estabeleceram requisitos rigorosos para a pessoa que ocuparia esse cargo. O primeiro diretor-presidente da ANSN terá um mandato de 4 anos. Os demais dois diretores da autoridade terão mandatos de 3 anos e 2 anos. No futuro, todos os mandatos terão 5 anos de duração.
A Lei 14222 só entrará em vigor e produzirá efeitos quando for publicado o Decreto de Estrutura da ANSN. Em outras palavras, a autoridade foi criada, mas só entrará em operação quando o Decreto de Estrutura for publicado.
Por sua vez, o Decreto de Estrutura (1142/2022) já foi elaborado, mas só entrará em vigor na data da nomeação do presidente da ANSN. Portanto, esses instrumentos legais estão interligados. Porém, como não houve a nomeação do presidente da ANSN, a nova autarquia ainda não está em funcionamento.
Quais são os principais problemas causados por essa situação?
Há um problema de imagem internacional do Brasil associado a esse cenário. Quando a ANSN foi criada em 2021, essa novidade foi anunciada para a Agência Internacional de Energia Atômica. No entanto, estamos caminhando para o final de 2023 e a ANSN ainda não está operando. Isso gera incertezas e perguntas por parte da comunidade internacional sobre essa indefinição, o que afeta a imagem do Brasil.
Existe também uma indefinição em relação ao quadro funcional. Os funcionários da CNEN que lidam com segurança migrarão para a ANSN, enquanto os que se dedicam à pesquisa permanecerão na CNEN. No entanto, ainda não está definido o destino dos funcionários da área meio (logística, pessoal, comunicação, administração, entre outros).
Por fim, importante lembrar que o Acórdão 1108/2014 do Tribunal de Contas da União não foi cumprido. Esse acórdão exigia que o conflito de interesses da CNEN fosse resolvido, mas como a ANSN ainda não está operacional, esse problema ainda persiste. Assim, em 2023, estamos essencialmente na mesma situação de 2014.
Já existe algum tipo de acompanhamento sobre os motivos que levaram a essa morosidade na criação da ANSN?
O Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu acompanhar mais de perto o processo de criação da ANSN e abriu um processo, o TC 020.858/2023, que está sendo relatado pelo Ministro Aroldo Cedraz. O objetivo é acompanhar a estruturação da ANSN. O TCU realizou visitas à CNEN e ao Ministério de Minas e Energia e deve emitir um relatório até o final do ano para abordar a lentidão desse processo.
Por fim, quais devem ser os próximos passos para, de fato, tirar a ANSN do papel?
Por um tempo, faltou pautar esse assunto no governo. Após a posse em janeiro, houve um período de adaptação para priorizar diversas questões. Agora, após dez meses da nova administração, parece ser um momento adequado para retomar a discussão sobre a ANSN e avançar no processo de nomeação.
Uma audiência pública foi aprovada recentemente na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados para discutir a situação da ANSN. Ainda não foi marcada uma data para essa audiência, mas já foram definidas as pessoas que serão chamadas para participar. Isso pode ser um passo importante para colocar o assunto em discussão no governo brasileiro.
É decidir quem serão os membros da diretoria colegiada da ANSN. Esses nomes serão enviados para o Senado Federal, onde acontecerá a sabatina dos indicados. Concluídas essas etapas e, após a nomeação da diretoria, estará aberto o caminho para permitir que o Decreto de Estrutura e a Lei 14.222 entrem em vigor, iniciando de fato os trabalhos da ANSN.
A Convenção sobre Segurança Nuclear da IAEA específica que o órgão regulador seja efetivamente independente das organizações envolvidas com uso e promoção da energia nuclear. O Brasil sempre explicou que, no que diz respeito às usinas nucleares, essa independência estava assegurada porque a CNEN reportava ao MCTI e a Eletronuclear reporta ao MME. A ANSN, que assumirá a função da CNEN de fiscalizar as usinas nucleares e demais atividades nucleares, reporta ao MME. Em outras palavras, os órgãos diretamente envolvidos nas atividades nucleares estão se auto fiscalizando. Alguém vai ter que explicar e justificar esta decisão à IAEA.