ESTUDO QUE EMBASOU PEDIDO DE PERDÃO DE CONTEÚDO LOCAL DE LIBRA FOI FEITO PELA PRÓPRIA PETROBRÁS E IGNOROU CASOS DE SUCESSO
Por Daniel Fraiha (daniel@petronoticias.com.br) –
O debate do conteúdo local ganhou novos capítulos com a abertura à consulta pública do processo de waiver (perdão pelo descumprimento da política) para o FPSO de Libra, no pré-sal, e os documentos mostram que a Petrobrás continua fechada para um diálogo aberto com a indústria brasileira. No relatório disponibilizado pela ANP, a estatal inclui um anexo da DNV GL para ratificar suas alegações de que os fornecedores nacionais são incapazes de atendê-la no prazo e no preço desejado, mas não detalha as bases das afirmações mais uma vez. O documento é na verdade fruto de um contrato de validação da metodologia criada pela petroleira e pelo consórcio de Libra, fundamentado por sua vez em informações fornecidas pela própria Petrobrás. E, o mais crítico, é que as premissas apresentadas pela estatal não levam em conta casos de sucesso na entrega de conteúdo local em projetos dela própria. Ainda mais curioso é o fato de a companhia usar exemplos da P-66, da P-74 e da P-76 para atestar problemas de fornecimento em determinados itens, mas não mencioná-las quando trata de casos em que tiveram resultados positivos, como no dos sistemas de medição fiscal, em que seus percentuais de conteúdo local ficaram entre 64,5% e 80,9%. São índices altos e que atendem às regras. No entanto, não impediram a petroleira brasileira de ser taxativa ao indicar o percentual de fornecimento nacional que considera “factível” para estes itens no FPSO Piloto de Libra: 0%.
O caso vem à tona alguns dias após a publicação do Petronotícias sobre a ausência de comparação dos preços brasileiros e estrangeiros nos documentos apresentados pela Petrobrás, que deveriam ser a base das discussões no processo de consulta pública, já que o presidente da Petrobrás, Pedro Parente, alega que o custo da construção em solo brasileiro seria 40% superior ao de se fazer no exterior, sem a divulgação de qualquer dado que comprove essa afirmação até o momento. No texto em questão, o documento da DNV GL – que ocupa 62 das 158 páginas do processo – era apontado como uma das bases para o pedido de waiver proposto pela Petrobrás à ANP. A respeito disso, no entanto, a DNV procurou o Petronotícias na segunda-feira (13) para esclarecer sua posição no processo, em nota que reproduzimos na íntegra abaixo:
“Com relação às matérias recentemente publicadas sobre o estudo apresentado pelo Consórcio Libra como parte do pedido de waiver para o FPSO Piloto de Libra, a DNV GL vem esclarecer que o escopo contratado pelo Consórcio através de licitação foi ‘Serviço de validação da metodologia de cálculo de Conteúdo Local do FPSO do Piloto de Libra’. Com base neste escopo, a DNV GL validou a metodologia elaborada pelo Consórcio, que foi baseada em estudos de mercado já existentes e dados fornecidos pelo Consórcio referentes a plataformas em construção no Brasil e já entregues. A validação da metodologia pela DNV GL foi feita com base nas resoluções da ANP.
Ressaltamos que a DNV GL não conduziu nem validou nenhum estudo sobre a capacidade da indústria nacional. Portanto, a DNV GL não avaliou a capacidade da cadeia de fornecimento Brasileira com relação à construção ou conversão de FPSOs, ou ainda ao fornecimento de bens, serviços e equipamentos.”
A nota, que segundo a DNV foi redigida em conjunto com a Petrobrás e o consórcio de Libra, deixa claro que foi a própria estatal quem fez o principal estudo que embasa seu pedido. No resumo executivo do documento, que possui 62 páginas, afirma-se que o consórcio de Libra realizou o planejamento de conteúdo local “factível” para o projeto de construção do primeiro FPSO a ser utilizado no desenvolvimento do campo e que a DNV GL foi contratada para a validação do planejamento. No texto, é dito que “o serviço de validação avaliou a consistência da metodologia, premissas adotadas, memórias de cálculo, fontes de consulta e outros dados relevantes do planejamento do FPSO para o Projeto Piloto de Libra”, complementando: “uma primeira análise consistiu na avaliação da consistência da documentação apresentada como fonte para definição dos percentuais e das justificativas do conteúdo local estimado”.
Além disso, em determinado ponto do documento, há a seguinte afirmação:
“Quanto à viabilidade de utilização dos estaleiros nacionais para construção/conversão do casco e módulos, a DNV GL recomendou que outras fontes de consulta independentes fossem avaliadas, de modo a ratificar o estudo interno da Petrobrás. Diante dessa sugestão, a Petrobrás encaminhou a apresentação realizada pela IHS no Brazil Cost and Strategic Sourcing, em 15 de dezembro de 2015”.
No entanto, a Petrobrás mais uma vez não detalha as fontes de seu estudo interno, que desconsiderou casos de sucesso de suas próprias contratações nos últimos anos. No início do documento da DNV GL, na página de “descritivo do trabalho”, que seria uma das indicações fundamentais para a compreensão do planejamento da Petrobrás, há o seguinte texto:
“A seguir é listada a documentação final utilizada, com breve descritivo”, seguido dos itens incluídos nas imagens abaixo.
Como se pode ver, a documentação listada não é muito esclarecedora, já que foi omitida do documento anexado para consulta pública. Ainda assim, algumas páginas adiante o relatório indica algumas fontes do estudo, como o “relatório de monitoramento do índice de conteúdo local da P-74”; o “relatório de consolidação dos índices de conteúdo local dos trocadores de calor para o FPSO P-66”; as “cartas do consórcio P-76”; e a apresentação “Brazilian Upstream Market: A House of cards”, da consultoria IHS. Os documentos, no entanto, não são disponibilizados, mas apenas conclusões sobre eles.
O que chama mais a atenção nesta seleção de fundamentos não explicitados pela Petrobrás é que a empresa não levou em conta casos de sucesso de fornecimentos nacionais de seus últimos projetos, preferindo focar apenas nos casos em que houve atraso ou algum problema. E, mesmo assim, adotou a postura de quebra do conteúdo local.
O caso mais notório dentro desse cenário, com base apenas nos documentos já divulgados pela ANP, é o dos sistemas de medição fiscal, a que o planejamento da Petrobrás atribuiu conteúdo local factível de 0%, com validação da DNV GL para a metodologia. Não se sabe quais foram os dados apresentados pela estatal para validação neste caso, mas uma carta de manifestação da Abemi em parceria com a empresa Metroval, também anexada ao processo, apresenta altos índices de conteúdo local dos sistemas de medição fiscal já fornecidos para diversas plataformas da petroleira, inclusive as três citadas nos exemplos dados pela companhia: P-66, P-74 e P-76.
Na lista anexada ao processo, há os seguintes percentuais de conteúdo local já concretizados:
P-55 – Sistema de Medição de Óleo, Água e Gás (69,61% de conteúdo local);
P-62 – Sistema de Medição de Óleo, Água e Gás (80,04% de conteúdo local);
P-66 – Sistema de Medição e Controle de Vazão de Óleo de Transferência (80,65% de conteúdo local);
P-67 – Sistema de Medição e Controle de Vazão de Óleo de Transferência (76,57% de conteúdo local);
P-68 – Sistema de Medição e Controle de Vazão de Óleo de Transferência (83,05% de conteúdo local);
P-74 – Estação de Medição Fiscal de Óleo (80,96% de conteúdo local);
P-76 – Sistema de Medição de Óleo, Água e Gás (64,56% de conteúdo local).
Na maioria dos casos, a validação feita pela DNV GL aponta como base o estudo interno da Petrobrás “Análise de Risco do impacto da disponibilidade de cais, dique seco e canteiro (VLCC) para atendimento à curva de óleo da Petrobrás”. No entanto, o documento, que poderia ser esclarecedor para a indústria brasileira compreender a postura da Petrobrás e ter a chance de apresentar dados que atestem sua capacidade de fornecimento, não foi disponibilizado pela estatal. Ou seja, a companhia divulgou apenas a validação da DNV GL para um estudo que a própria operadora apresentou como base do pedido de quebra do conteúdo local, sem abrir os dados que embasam as alegações de que as empresas presentes no Brasil não têm condições de atender às demandas do projeto.
Ainda assim, no caso dos sistemas de medição fiscal o estudo interno da Petrobrás não é citado e não há esclarecimento sobre quais foram os dados utilizados como base para a validação, situação que se repete em alguns outros casos. Isso ocorre nas análises das premissas dos seguintes itens:
– Ancoragem – Sistemas de Ancoragem
– Ancoragem – Pré-instalação e Hook-up das linhas de ancoragem
– Plantas – Engenharia básica (topside)
– Plantas – Engenharia de Detalhamento (topside)
– Plantas – Gerenciamento (topside)
– Plantas – Sistemas e Equipamentos – Vasos de Pressão
– Plantas – Sistemas e Equipamentos – Queimadores
– Plantas – Sistemas e Equipamentos – Compressores Parafuso
– Plantas – Sistemas e Equipamentos – Sistema de Automação
– Instalação e Integração dos Módulos – Engenharia Básica
– Instalação e Integração dos Módulos – Engenharia de Detalhamento
– Instalação e Integração dos Módulos – Gerenciamento
– Instalação e Integração dos Módulos – Construção e Montagem
– Instalação e Integração dos Módulos – Meios Navais
– Instalação e Integração dos Módulos – Comissionamento
– Instalação e Integração dos Módulos – Materiais
Em relação aos módulos, que nos últimos anos vinham sendo feitos em grande parte com sucesso no Brasil, o documento valida a metodologia sem esclarecer a base das informações para nenhum dos itens. As integrações dos módulos dos FPSOs Cidade de Mangaratiba e Cidade de Itaguaí, por exemplo, foram feitas no Brasfels, e as duas entregas ocorreram antes do prazo. No primeiro caso, com um dia de antecedência, enquanto que no segundo foram três meses antes do que previa o cronograma. Antecedência que valeu um bônus para a Modec. No entanto, nas primeiras páginas do documento fica claro que a decisão da Petrobrás é acelerar ao máximo o passo, sem levar em conta a indústria nacional, tratando o compromisso do conteúdo local apenas como um empecilho e não uma determinação contratual regida pela legislação brasileira. Um indício dessa posição da Petrobrás é o seguinte trecho:
“O estudo é claro quanto à existência de canteiros para a construção de módulos no Brasil. Porém, quando adicionado dentro do cronograma do projeto e no conceito de lógica construtiva e caminho crítico da construção da UEP [Unidade Estacionária de Produção] dentro do prazo de 38 meses, o mesmo indica a necessidade de restrições quanto à construção de alguns módulos no Brasil”.
No caso do comissionamento do topside, assim como em alguns outros itens, o documento foge do padrão, sem o atestado de validação presente nas outras seções, já que nestes casos a estatal não estipulou um percentual de conteúdo local. Nesta parte, há apenas as seguintes afirmações:
“A DNV GL verificou que o planejamento de conteúdo local não prevê custos com comissionamento ou pré-comissionamento das plantas durante a fase de construção e montagem. De acordo com a Petrobrás, esses custos não são detalhados pelo software OGM [Oil and Gas Manager] em virtude do grau de maturidade dos dados de entrada do projeto”.
O caso se repete nos seguintes itens:
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Fornos;
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Proteção Catódica;
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Compressores Alternativos;
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Motores a diesel (até 600 hp);
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Turbinas a Vapor;
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Sistema de Telecomunicações;
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Torre de Processamento;
Plantas – Sistemas e Equipamentos – Torre de Resfriamento.
É uma resposta similar às que a estatal dá em relação a todas as considerações feitas pela DNV ao longo do documento, sempre afirmando que não poderia acatar determinadas sugestões da empresa certificadora por conta do “grau de detalhamento dos dados obtidos pelo software OGM, que corresponde a um projeto conceitual”.
O fato é que as premissas usadas para o pedido de waiver ainda carecem de luz para que a indústria brasileira possa ter a chance de apresentar seus argumentos e seus dados. Caso não haja a divulgação dessas informações, não tem como as empresas nacionais se posicionarem e mostrarem sua capacitação. A consulta pública neste cenário pode virar um caso de pouca efetividade, sem que haja uma discussão profunda e aberta entre todas as partes envolvidas.
Afinal, não se trata de “ranço ideológico”, como chegou a afirmar Parente em algumas ocasiões, mas uma questão de interesse nacional e que afeta inclusive algumas das grandes fornecedoras internacionais, que investiram grandes somas no Brasil nos últimos anos.
Há alguns exemplos de destaque, como a holandesa SBM, que investiu no estaleiro Brasa, em Niterói (RJ), a Keppel Fels, de Cingapura, que investiu no estaleiro Brasfels, em Angra dos Reis (RJ), a Jurong, também de Cingapura, que investiu no estaleiro Jurong Aracruz, na cidade homônima do Espírito Santo, dentre outras estrangeiras que aportaram recursos e apostaram em instalações locais, como Kawasaki, Toyo e Samsung, em estaleiros que tiveram percalços, mas ainda tentam sobreviver pelo País.
São essas algumas das empresas – renomadas mundialmente – que buscam negócios para seguirem firmes no Brasil. A construção do FPSO de Libra com 0% de conteúdo local não seria apenas um ataque às empresas brasileiras, mas também à confiança que essas estrangeiras depositaram no Brasil ao acreditarem nas regras estabelecidas com a política de conteúdo local. No entanto, a Petrobrás ainda não abriu os olhos para as consequências que pode gerar essa atitude em relação a Libra – ou não captou a dimensão delas até agora.
Neste panorama, cabe um questionamento. Será que é a indústria nacional que não tem capacidade de ser competitiva, mesmo quando são incluídas na lista algumas das maiores empresas do mundo, ou são as diferenças de exigências tributárias, trabalhistas e de QSMS no Brasil, assim como o período que foi gasto em capacitação de mão de obra, desenvolvimento de fornecedores locais e estabelecimento das instalações no País? A situação é complexa e não há resposta simples, mas é importante que as decisões não sejam tomadas sem que se ouçam todos os participantes dessa cadeia, sejam petroleiras, fornecedores, associações ou sindicatos. Todas as vozes envolvidas ou afetadas precisam fazer parte desse processo, que servirá de base para a atuação das petroleiras no pré-sal daqui em diante.
Veja a seguir os índices de conteúdo local estipulados pela Petrobrás no estudo validado pela DNV GL:
Clique aqui para acessar na íntegra o pedido de waiver protocolado pela Petrobrás junto à ANP.
E assim a verdade começa a desmistificar as falsas premissas colocadas por Parente e equipe, ou melhor séquito. Nada melhor que a transparência. Na área que transito, E&P, principalmente na exploração, as alegações publicadas para justificar a venda de Carcará têm as mesmas falácias que as apresentadas no pedido de waiver do conteúdo local. Sempre as argumentações da Petrobras são baseadas em uma única hipótese, que curiosamente sempre contempla venda de ativos por preços absolutamente depreciados pelos impairments, ou a contratação de serviços e equipamentos que excluem as empresas nacionais. Antigamente construíamos soluções com equipes multidisciplinares, e construíamos projetos que… Read more »